Domingo, 03 de Agosto de 2025
Durante a 23ª edição da Festa Literária de Paraty (Flip), a escritora Conceição Evaristo defendeu o papel da ficção na reconstrução da história de africanos e seus descendentes no Brasil. "No espaço em que a história e a ciência deixaram de eleger fatos relativos à história dos africanos e seus descendentes no Brasil, a literatura entra com a sua ficção", afirmou Evaristo, em conversa mediada pela autora Lilia Guerra.
Evaristo destacou a importância de obras como "Um Defeito de Cor", de Ana Maria Gonçalves, para ocupar esses vazios. "É preciso criar ficção para ocupar esses vazios", lembrou. "E, para quem trabalha com memória, entre o esquecer e o lembrar, a ficção entra. Ela entra como escolha, ela entra para nos salvar."
Referenciando o tema da mesa, "Anotações de um Brasil que arde", Conceição Evaristo ressaltou que a memória dos povos escravizados e marginalizados "arde" na formação da identidade nacional da população negra.
"Essa ardência que nós trazemos nos coloca no campo da luta e nos coloca também no campo da crença e da esperança, e nos coloca, antes de tudo, no campo da ação", declarou.
Evaristo deixou um recado para as novas gerações negras: "Esse passado de resistência tem que continuar potencializando a nossa luta".
"Todo o silenciamento que foi provocado, toda subalternidade que as nossas mais velhas passaram, que a minha mãe passou, que a sua avó passou, que nós passamos, tudo isso nos potencializa para estar aqui hoje", reforçou.
A escritora também relembrou a história de mulheres negras que, mesmo sob o jugo da escravidão, narravam histórias para os filhos da Casa Grande. "Por isso eu tenho dito: a nossa escrevivência não é para ninar os da Casa Grande e sim para acordá-los dos seus sonos injustos."
Ana Maria Gonçalves, autora de "Um Defeito de Cor" e recentemente eleita para a Academia Brasileira de Letras, também teve destaque na Flip.
"A história negra do Brasil vai sendo reconstruída retroativamente, conforme a gente vai conseguindo, seja através da ficção, preencher lacunas que a história não dá conta, seja através desses documentos que a gente vai achando ao longo dos anos, que respondem dúvidas", afirmou Gonçalves.
Ela comentou sobre a descoberta de documentos relativos à vida de Luiza Mahin, mãe de Luiz Gama, que inspirou sua obra: "Às vezes, [vamos] reescrevendo e revisitando a história, acrescentando capítulos e camadas novas, numa identidade ainda que vamos construindo aos poucos".
Gonçalves explicou que a protagonista de seu romance é uma colagem de histórias de diversas mulheres que viveram em épocas e locais semelhantes aos de Luiza Mahin.
"A história da Kehinde é composta da história de pelo menos umas outras 300 mulheres. Eu fui para jornais, revistas e arquivos, pesquisando vivências de mulheres que eram dos mesmos locais e datas que o Luiz Gama fala que a mãe dele pode ter vivido."
*A repórter e a fotógrafa viajaram a convite da Motiva, patrocinadora e parceira oficial de mobilidade da Flip 2025.